Fisioterapia e saúde coletiva: desafios e novas responsabilidades profissionais






Introdução

A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a busca dos objetivos da universalidade, integralidade e equidade têm suscitado diversas elaborações e proposições referentes aos modelos assistenciais adotados, à lógica de financiamento e às práticas profissionais. No que tange à atuação profissional, tem se tornado crescente o debate em torno da necessidade de adequação das profissões à realidade epidemiológica e à nova lógica de organização dos sistemas de serviços de saúde. Nesse sentido, o presente trabalho busca refletir sobre a atuação da fisioterapeuta no SUS.

Desde a sua origem, a fisioterapia tem um caráter essencialmente curativo e reabilitador. Em decorrência das guerras e do alto índice de acidentes de trabalho, gerou-se grande número de óbitos e mutilados, em sua maioria de homens em idade produtiva, desencadeando uma baixa na força de trabalho. Essa situação fez surgir a necessidade de reinserir indivíduos lesionados e mutilados ao setor produtivo. Daí, surgiram os centros de reabilitação, com o intuito de restaurar a capacidade física dos acidentados e mutilados, e quando não mais possível restaurar a capacidade física original, desenvolver a capacidade residual, adaptando-a para outra função1.

A fisioterapia foi instituída no Brasil como profissão de nível superior em 1969, através da publicação do Decreto-Lei no 938/692. Anteriormente a esse período, a ocupação de fisioterapeuta era de nível técnico e sua função era de executar técnicas, prescritas por médicos, com objetivo de reabilitar pessoas lesionadas. Com a publicação do Decreto-Lei no 938/69, o fisioterapeuta ganha status de nível superior e autonomia profissional; no entanto, sua atuação continua destinada, quase que exclusivamente, às ações rea-bilitadoras.

Rebellato e Botomé3, ao analisarem a legislação que regulamenta a profissão, observam limitações nas possibilidades de atuação em outros níveis de atenção. Apontam restrições à prática profissional impostas pelo Decreto-Lei no 938/69 que institui "atividade privativa do fisioterapeuta executar métodos e técnicas fisioterápicas com a finalidade de restaurar; desenvolver e conservar a capacidade física do paciente". Um profissional de nível superior, especialmente da área de saúde, não pode restringir-se a apenas executar métodos e técnicas. Deve ter a capacidade de mais do que executar procedimentos, analisar e produzir novos saberes. Outra questão que também merece destaque é a restrição da atuação à restauração, desenvolvimento e conservação da capacidade física, ou seja, o profissional deve atuar apenas sobre a capacidade física, não sendo sua responsabilidade atuar para o desenvolvimento da qualidade de vida e saúde de forma plena. Observa-se, ainda, possibilidade de atuação limitada, em virtude da prática desse profissional estar voltada apenas para atenção ao paciente, isto é, aos indivíduos já cometidos por algum tipo de distúrbio que interferem em sua capacidade física, restringindo a atuação a outros níveis que não seja a reabilitação.

Levando-se em consideração o contexto histórico do período de publicação do referido decreto-lei, pode-se tolerar que as condições de saúde da população e a própria lógica de organização do sistema de saúde vigente corroboravam essa forma de atuação. No entanto, as mudanças no perfil epidemiológico e as transformações no sistema de saúde brasileiro, com destaque para a implantação do SUS, impõem novos desafios à fisioterapia e novas responsabilidades aos profissionais.

Diante disso, esse artigo tem por objetivo discutir a reorientação do campo de atuação profissional da fisioterapia e novas possibilidades de atuação no SUS. Inicialmente, realiza-se um debate sobre as transições demográfica, nutricional e epidemiológica e as demandas profissionais diante dos novos modelos assistenciais. A seguir, discute-se a fisioterapia coletiva, como novo modelo de atuação profissional. E, por fim, apresentam-se algumas possibilidades de atuação do fisioterapeuta na atenção básica e no âmbito coletivo.



Novo perfil epidemiológico e os novos modelos assistenciais

Para entender o papel da fisioterapia na sociedade brasileira, quais são suas responsabilidades e quais são seus desafios, é necessário conhecer o perfil epidemiológico da população, ou seja, quais são as principais causas de morbidade e mortalidade da população. De maneira geral, a maioria dos países tem passado por um processo chamado de transição epidemiológica, definida como mudança nos padrões de morte, morbidade e invalidez, que caracterizam uma população específica e que, em geral, ocorrem em conjunto com outras transformações demográficas, so-ciais e econômicas4.

Embora existam diferenças consideráveis entre os tipos básicos de transição epidemiológica, Barreto e Carmo5 descrevem que, em maior ou menor proporção, na maioria dos países, esse processo caracteriza-se por diminuição na mortalidade e natalidade e mudança na carga da doença, diminuindo a prevalência de óbitos por doenças infecto-contagiosas e aumentando a carga por doenças crônico-degenerativas.

No Brasil, como na maioria dos países latino-americanos e em desenvolvimento, a transição epidemiológica ocorreu de forma complexa, não como uma mudança de uma carga de doenças para outra, mas como uma sobreposição de fatores. Conforme afirmado por Omram4, o desenvolvimento desse novo perfil epidemiológico ocorre em concomitância com outras condições, a exemplo da transição demográfica e a transição nutricional.

O elevado crescimento populacional, o aumento da taxa de urbanização e a crescente expectativa de vida caracterizam a transição demográfica brasileira6-8. A questão nutricional também interfere sobremaneira no perfil epidemiológico de uma população. O Brasil apresenta mudanças significativas no perfil nutricional da população, com a gradativa superação da fome endêmica e epidêmica e a crescente prevalência da obesidade, migrando a principal preocupação da fome/desnutrição para o sobrepeso/obesidade9-11. Essas mudanças constituem-se em grande preocupação para as autoridades sanitárias, visto que a obesidade apresenta-se como importante fator de risco para problemas de saúde como hipertensão, diabetes, hipercolesterolemia, etc.

Ao analisar o perfil de mortalidade da população brasileira no decorrer do século XX, observa-se a principal característica da teoria da transição epidemiológica: diminuição da mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias (DIP) e aumento dos óbitos por doenças do aparelho circulatório (DAC), por doenças neoplásicas (NEO) e por causas externas (CE)5,11. No começo do século passado, doenças infecciosas como varíola, sarampo, malária e tuberculose foram responsáveis por quase metade de todos os óbitos ocorridos no Brasil. Isso devido, principalmente, às péssimas condições de higiene e saúde e à baixa cobertura da assistência médica6. No decorrer do século, essa carga de doenças altera-se com a diminuição gradativa dos óbitos por DIP e o aumento dos óbitos pelas chamadas doenças da modernidade, DAC, NEO, CE.

O perfil de morbidade da população não se transformou na mesma cadência do perfil de mortalidade, ou seja, a substituição de uma carga de doença por outra. O atual perfil de morbidade caracteriza-se pela superposição entre as cargas de DIP e as DAC, NEO e CE12. O quadro mórbido apresenta-se extremamente complexo, em que se passou a conviver com as doenças da modernidade, sem haver um recrudescimento das DIP, sempre presentes diante da pobreza e do subdesenvolvimento. Essa situação, presente não só no Brasil, mas também na maioria dos países subdesenvolvidos, é denominada por Frenk13 como acumulação epidemiológica.

Esse quadro epidemiológico, aliado a outras razões ideológicas, econômicas e políticas, tem motivado a reestruturação dos modelos de atenção à saúde e consequente redefinição das responsabilidades e da prática do profissional fisioterapeuta. A organização dos sistemas de serviços de saúde tem sido um dos temas centrais do debate conceitual no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)14. Os sistemas de saúde têm se constituído como campo de disputa, onde se enfrentam atores com interesses e matizes ideológicas diversas, a fim de conformar o sistema para atendimento de interesses diversos.

A forma de organização dos serviços de saúde no Brasil é objeto de análise de Paim15, que identi-fica dois principais modelos de atenção à saúde, o modelo médico-assistencial privatista e o modelo sanitarista. No entanto, essas formas de organização apresentam-se limitadas e incapazes de atender as reais necessidades de assistência a saúde da população. Diante dessa limitação e com o advento do SUS, surgem novas proposições de organização da atenção à saúde, fundamentada nos princípios da universalidade, integralidade e equidade, e objetivando consolidar os pressupostos do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira.

Dentre as proposições dos modelos assistências, o modelo de vigilância à saúde16 destaca a regionalização e a hierarquização como princípios estratégicos e define a atenção básica como eixo de reestruturação do sistema. A atenção básica, mais do que o oferecimento de uma assistência primária, constitui-se como eixo estruturante do sistema, devendo inclusive os outros níveis de atenção serem planejados a partir das demandas emanadas desse primeiro nível14.

Diante desse cenário, cabe à fisioterapia uma releitura de seus fundamentos e análise de sua prática, com vistas a adaptar-se a essa realidade e contribuir para a mudança do quadro social e sanitário do país. Em consonância com os princípios propostos pelo modelo de vigilância à saúde16, o fisioterapeuta deve ser inserido em outros níveis de atenção e desenvolver suas ações de acordo as diretrizes da territorialização e da adscrição de clientela.

Com a atuação dentro de um território estabelecido e como uma população definida, o fisioterapeuta passa ter a possibilidade de acompanhar mais proximamente e ser responsável pela saúde da população adscrita. A lógica da responsabilização estimula o desenvolvimento de novas relações entre profissionais e usuários, com o estabelecimento de vínculos, e a possibilidade de um acompanhamento continuado, o que potencializa o desenvolvimento de ações promocionais e preventivas16,17.



Fisioterapia coletiva: novo modelo de atuação profissional

A Figura 1 apresenta uma representação esquemática da limitada área de atuação da fisioterapia reabilitadora. Pela sua própria concepção e sua conformação ao modelo assistencial curativo, a fisioterapia destinou-se, quase exclusivamente, ao controle dos danos de determinadas doenças. A atuação na fisioterapia reabilitadora é destinada à cura de determinadas enfermidades e/ou a reabilitação de sequelas e complicações. Seu objeto de intervenção é o sujeito individualizado, quando não, apenas partes ou órgãos isolados do corpo.









Esta atuação direcionada apenas para o controle de danos impõe restrições à prática do profissional fisioterapeuta, que se limita a intervir apenas quando a doença já está instalada e, na maioria dos casos, de forma avançada. Nesse caso, destacam-se como locus de atuação o hospital e a clínica de reabilitação, espaços tradicionalmente estabelecidos e popularmente valorizados para a prática fisioterapêutica. A priorização desses espaços condiciona e restringe as possibilidades de intervenção em apenas um nível de atenção, a reabilitação. Tal situação impõe à população grande carga de doenças e sequelas, que poderiam ser, em muitos casos, evitadas. Os conhecimentos inerentes à fisioterapia também podem contribuir para prevenção de doenças e sequelas, quando utilizados em outros níveis de atenção.

Segundo o modelo da história natural da doença, proposto por Leavell e Clark18, os níveis de prevenção são hierarquizados em prevenção primária, secundária e terciária, a depender do momento da intervenção. Ao relacionar a atuação do fisioterapeuta com esses níveis de prevenção, observa-se uma atuação destinada ao controle de danos (doenças, sequelas e agravos), ou seja, restringindo-se ao nível da reabilitação.

Embora, nos últimos anos, a fisioterapia tenha ampliado e aprofundado seus conhecimentos técnicos e alargado sua área de atuação, a exemplo da acupuntura, estética, Pilates, RPG, fisioterapia desportiva e fisioterapia respiratória, essa ampliação ocorreu, majoritariamente, no nível terciário. Mesmo com a ampliação das possibilidades de atuação do profissional, ainda predomina uma atenção destinada à recuperação de distúrbios ortopédico-traumatológicos e neurológicos. Como em sua gênese, a fisioterapia ainda concentra seu foco na reabilitação de indivíduos vítimas de doenças ocupacionais, lesões por traumas e acidentes, sequelados de doenças isquêmicas ou cerebrovasculares e distúrbios do sistema nervoso central e periférico.

Diante dos novos desafios da sociedade brasileira, com profundas mudanças na organização social, no quadro epidemiológico e na organização dos sistemas de saúde, surge a necessidade do redimensionamento do objeto de intervenção da fisioterapia, que deveria aproximar-se do campo da promoção da saúde e da nova lógica de organização dos modelos assistenciais, sem abandonar suas competências concernentes à reabilitação. Esse redimensionamento do objeto de intervenção e da praxis profissional conduz às mudanças mais profundas, de natureza epistemológica, na concepção e atuação do profissional fisioterapeuta.

Frente a esses desafios e necessidades, surge a proposição do modelo da fisioterapia coletiva19 como base para reorientação do foco de atenção e da prática profissional do fisioterapeuta. A fisioterapia coletiva engloba e amplia a fisioterapia reabilitadora, possibilitando o desenvolvimento da prática fisioterapêutica tanto no controle de dados quanto no controle de riscos. A Figura 2 apresenta uma esquematização desse modelo da atuação da fisioterapia, que contempla a fisioterapia reabilitadora e alarga as possibilidades de atuação para além do nível terciário.









Enquanto a fisioterapia reabilitadora concentra sua atuação, quase que exclusivamente, no controle de danos, seja buscando a cura de determinadas doenças que restringem a locomoção humana, seja reabilitando sequelados de patologias diversas ou desenvolvendo a capacidade residual funcional de indivíduos que tiveram lesões irreparáveis de determinadas funções, a fisioterapia coletiva possibilita e incentiva a atuação também no controle de risco, ou seja, no controle de fatores que potencialmente podem contribuir para o desenvolvimento da doença.

Aqui reside a diferença crucial entre os objetos de intervenção dos dois modelos de atuação profissional, o momento da intervenção. Enquanto no controle de danos a intervenção ocorre quando a doença já está instalada, e muitas vezes em estado avançado, no controle dos riscos, a intervenção ocorre antes da doença acontecer, ou seja, antes do aparecimento de sequelas e complicações limitadoras do movimento.

Com relação ao sujeito da intervenção, no controle de danos, a atuação é direcionada ao indivíduo doente; já no controle de riscos, a atuação é direcionada aos grupos populacionais doentes e não doentes, mas com risco potencial de adoecer15. Esse direcionamento da atuação para o nível primário e destinado ao coletivo de pessoas potencializa os resultados das ações de saúde, pois além de inibir o surgimento e desenvolvimento de doenças evitáveis, busca transformar as condições de vida dos grupos populacionais.

Os riscos a que está exposta a população podem ser de natureza comportamental, educacional, social, econômica, biológica, físico-química, dentre outros15,16. Para a identificação desses riscos, duas necessidades impõem-se ao profissional fisioterapeuta: atuação em equipe multidisciplinar e utilização de conhecimentos de outras áreas do saber, como a epidemiologia, a geo-grafia e as ciências sociais.

Os conhecimentos relativos à fisioterapia tradicional são, por si só, insuficientes para os diagnósticos da situação/condição de risco. Há necessidade de romper o isolamento e o individualismo da prática fisioterapêutica reabilitadora, emergindo uma nova lógica de atuação em equipe multiprofissional e interdisciplinar. O profissional fisioterapeuta deve interatuar não só com profissionais da área de saúde, como médicos, enfermeiros, psicólogos, agentes comunitários de saúde, nutricionistas, etc., como também com profissionais de outras áreas do saber, como sociólogos, antropólogos, historiadores, estatísticos, engenheiros, educadores, dentre outros.

No que se refere aos conhecimentos necessários à nova prática profissional, o fisioterapeuta deve aproximar-se de saberes da epidemiologia, que poderá oferecer conhecimentos quanto à distribuição das doenças nas coletividades, sua magnitude e potenciais fatores de risco, e das ciências sociais, que poderão desvelar os fatores culturais, comportamentais e religiosos do processo saúde-doença, bem como subsidiar a contextualização da realidade histórico-social na determinação do risco.

Com relação à interação com outros campos da área de saúde, torna-se necessária uma aproximação da fisioterapia com a vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, vigilância nutricional, vigilância à saúde do trabalhador e vigilância ambiental, com vistas à identificação e acompanhamento de problemas que requerem atenção contínua, ação sobre territórios definidos e articulação entre as ações promocionais, preventivas, curativas e reabilitadoras16.

Assim, deve ser destacado que o modelo da fisioterapia coletiva não visa extinguir as ações de cura e reabilitação característica da fisioterapia reabilitadora, mas sim acrescentar novas possibilidades e necessidades de atuação do fisio-terapeuta frente ao atual quadro sanitário e da nova lógica de organização do SUS.

As definições e proposições aqui expostas não dizem respeito à mera adjetivação - reabilitadora ou coletiva - da profissão de fisioterapia, mas sim à adequação e redefinição da praxis profissional e do seu objeto de trabalho. O objeto da atuação da fisioterapia continuará sendo o movimento humano; no entanto, essa atuação não se dará, exclusivamente, no indivíduo doente e sequelado; antes, porém, a atuação será direcionada às coletividades humanas, buscando transformar hábitos e condições de vida, promovendo saúde e evitando, consequentemente, distúrbios do sistema locomotor.

A fisioterapia necessita romper com as barreiras do modelo biologicista-curativo em que sempre se apoiou e se aproximar da saúde coletiva, que valoriza o social como categoria analítica do processo saúde-doença e propõe novas formas de organização do setor saúde20. A aproximação entre fisioterapia e saúde coletiva possibilitará novas reflexões sobre o papel da fisioterapia no atual quadro epidemiológico e na nova lógica de organização dos serviços de saúde, com grande potencial para a redefinição epistemológica do campo científico da profissão, tornando-a cientificamente mais fundamentada, sanitariamente mais contextualizada e socialmente mais comprometida.



Fisioterapia e atenção básica: novas possibilidades de atuação

Com a definição da atenção básica como eixo central de reestruturação do modelo assistencial brasileiro, impõem-se uma nova lógica de organização dos serviços e uma redefinição na atuação dos profissionais de saúde. Esse novo modelo busca romper com o curativismo do modelo vigente, reestruturando e articulando a assistência com ações de promoção da saúde, controle de risco e prevenção de doenças. Cabe destacar o enfoque que deve ser dado às ações intersetoriais, visto da incapacidade do setor saúde de reverter, isoladamente, os determinantes mais gerais e estruturais das condições de vida21. Estes determinantes só poderão ser transformados com a articulação dos diversos setores do governo e da sociedade, como infraestrutura, economia, educação e habitação, em ações desenvolvidas em conjunto e com a participação da sociedade.

Quanto ao modelo de prestação de serviços de saúde, esse deve ser descentralizado e hierarquizado, e organizado em níveis crescentes de complexidade14-16. O sistema deve estruturar-se de forma a oferecer uma ampla cobertura da atenção básica, contemplando grandes parcelas da população. A atenção básica deve ser resolutiva, solucionar os problemas de saúde mais prevalentes na população e encaminhar para outros níveis os problemas não solucionados em seu âmbito.

Essa lógica de estruturação do sistema objetiva o oferecimento de uma assistência integral à população. E integralidade não é apenas diretriz do SUS, integralidade é "bandeira de luta", é um conceito que permite uma identificação dos sujeitos como totalidades. A assistência integral extrapola a estrutura organizacional da assistência de saúde e prolonga- se pela qualidade real da atenção individual e coletiva assegurada aos usuários do sistema de saúde22. Ainda segundo o conceito de integralidade, as pessoas são encaradas como sujeitos, a atenção deve ser totalizadora e levar em conta as dimensões biológica, psicológica e social, visto que o homem é um ser indivisível e não pode ser explicado pelos seus componentes considerados separadamente23.

Para atingir a assistência integral, é necessário ampliar a capacidade do sistema, com garantia do acesso à atenção primária, secundária e terciária, sem perder de vista as ações promocionais e de controle de riscos. No entanto, os municípios têm demonstrado dificuldades para garantir o acesso da população aos outros níveis de assistência, especialmente no nível secundário24. Os municípios, especialmente os de pequeno e médio porte, têm conseguido, relativamente, ampliar a cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF); no entanto, têm encontrado dificuldades no estabelecimento de um sistema regionalizado de referência e contrarreferência que garanta uma assistência integral à população. Segundo Alves25, a expansão do PSF tem favorecido a equidade e universalidade da assistência, uma vez que as equipes têm sido implantadas, prioritariamente, em comunidades antes restritas quanto ao acesso aos serviços de saúde. Todavia, a integralidade das ações continua a ser um problema para o sistema de saúde.

Diante desse contexto, a aproximação entre a fisioterapia e o nível primário apresenta-se como alternativa capaz fortalecer a atenção básica, aumentando a resolutividade do sistema e contribuindo para a garantia da integralidade na assistência. A fisioterapia, embora historicamente tenha se mantido no nível da reabilitação, possui competências e habilidades suficientes para a atuação em outros níveis. Neste sentido, apresentam-se algumas possibilidades de atuação do fisioterapeuta na atenção básica e em ambiente comunitário.



Vigilância dos distúrbios cinesiofuncionais

A vigilância dos distúrbios cinesiofuncionais constitui-se em subárea da vigilância epidemiológica responsável pelo acompanhamento e monitoramento da integridade físico-funcional e dos distúrbios relacionados à locomoção humana. Essas ações de vigilância devem ocorrer a partir da atenção básica e com a participação do fisioterapeuta, ou fazendo parte da equipe de saúde da família ou interatuando com essa. A equipe de vigilância tem a responsabilidade pela saúde cinesiológica e funcional de determinadas populações em territórios definidos.

De acordo ao atual cenário epidemiológico, algumas condições apresentam maior potencial para a limitação da capacidade funcional das populações, a exemplo das patologias relacionadas ao aparelho cardiocirculatório, às causas externas e ao aumento da população idosa. As doenças cerebrovasculares quase sempre deixam sequelas que levam à limitação da locomoção humana ou incapacidade física. Os episódios de violência, especialmente os acidentes de tráfego, além de produzirem considerável número de óbitos, possuem grande poder incapacitante e têm gerado grandes contingentes de sequelados.

A saúde da população idosa merece especial atenção, em virtude da longevidade trazer consigo limitações na funcionalidade do aparelho locomotor, restringindo a deambulação e marcha dos idosos. Essa situação torna-se digna de ser monitorada, visto que a restrição à mobilização dos idosos ou o confinamento no leito apresentam-se como fatores de risco para o desenvolvimento de uma série de outras doenças.

Desta forma, a vigilância e o acompanhamento dos distúrbios cineticofuncionais têm por objetivo fornecer dados e informações relevantes para as equipes de saúde, tanto na definição do perfil epidemiológico da população, como subsidiando as atividades de planejamento e intervenção. Todavia, essa vigilância não deve se restringir aos limites da atenção básica. Deve constituir-se como instrumento para o monitoramento das condições de saúde nos âmbitos municipal, estadual e federal, subsidiando a definição de políticas públicas.



Orientações posturais

A questão da postura deve ser difundida em âmbito coletivo não apenas como questão estética, mas como atitude corporal inerente a uma vida saudável e fator preventivo para diversas doenças. No âmbito da atenção básica, o fisioterapeuta deve atuar preferencialmente com grupos populacionais, orientando sobre as posturas mais adequadas para cada grupo ou para cada situação. A prática da educação em saúde não deve e não pode ser entendida como ação vertical e unidirecional, do profissional que sabe para a população que não sabe26. O processo de educação e orientação postural deve ser construído coletivamente, levando-se em consideração quais os hábitos, costumes e crenças com poder de influência na postura daquela comunidade. Nesse sentido, dentre as possibilidades de atuação do fisioterapeuta na orientação postural, no âmbito da atenção básica, destaca-se a atuação em grupos de escolares, de gestantes e de idosos.

O desenvolvimento de hábitos posturais saudáveis deve começar ainda na fase da infância. A percepção e a conscientização da postura corporal, se iniciadas quando da formação dos conceitos iniciais da criança, podem acompanhá-la durante toda vida, desenvolvendo nos cidadãos consciência da própria postura. Desta forma, o fisioterapeuta deve atuar na orientação postural de crianças, em especial de escolares, instituindo uma cultura de valorização e cuidado com a postura corporal. A educação postural de escolares deve ser uma atividade continuada, articulada entre os setores de educação e saúde, com destacada participação dos professores, e que valorize o espaço da escola e o mundo da criança como locus preferencial de atuação.

O período de gestação gera importantes repercussões na postura corporal, na marcha e no retorno venoso, além de desencadear dores lombares e desconforto respiratório27. Em virtude dessas alterações, o fisioterapeuta deve atuar em grupos de gestantes, organizados a partir de cada PSF, orientando quanto às posturas corporais, exercícios de alongamento, relaxamento e auxílio ao retorno venoso, orientações sobre exercícios respiratórios, além de incentivo ao aleitamento materno e orientações dos cuidados com o bebê. Deve-se destacar a importância do desenvolvimento de atividades em grupo, que além da realização das atividades anteriormente descritas, possibilita um espaço de partilha de medos, inseguranças, expectativas e experiências.

No que se refere à população idosa, a atuação do fisioterapeuta na atenção básica possibilita o desenvolvimento de ações relacionadas à melhoria da postura, o estado físico-funcional, além de estimular o desenvolvimento da autoestima e bem-estar. O fisioterapeuta deve trabalhar com grupos de idosos, realizando as seguintes atividades: orientação da postura corporal; exercícios de relaxamento, alongamento e auxílio ao retorno venoso; caminhadas e atividades físicas moderadas; orientação quanto ao posicio-namento adequado do mobiliário do lar, banheiros e dispositivos auxiliares; dentre outros.



Desenvolvimento da participação comunitária

O envolvimento e a participação da comunidade têm sido cada vez mais utilizados como instrumento para elevação dos níveis de saúde. Além disso, a participação comunitária propicia a valorização da cidadania e elevação do capital social28. O ser humano é, em essência, um ser participativo e a prática da participação facilita o crescimento da consciência crítica, fortalece o poder de mobilização e interação para o entendimento e condução de sua vida social29. Desta forma, o fisio-terapeuta deve atuar no âmbito comunitário, incentivando e estimulando a participação da comunidade nas questões relacionadas à saúde.

Deve-se buscar o despertar da comunidade para a valorização da saúde individual e coletiva e conscientizar a população sobre o seu protagonismo na condução do sistema de serviços de saúde. Nesse sentido, a participação lograria a identificação dos principais problemas que atingem a comunidade; a corresponsabilização pela saúde; a participação no planejamento e definição das ações de saúde; a fiscalização dos recursos da saúde; a identificação de crenças e hábitos prejudiciais à saúde, estimulando hábitos de vida saudáveis; a mobilização da comunidade para a realização de campanhas de vacinação, prevenção de doenças, aleitamento materno, etc.

Apresenta-se aqui os conselhos locais de saúde como importante instrumento para potencia-lizar a participação da comunidade. O fisioterapeuta, juntamente com os demais componentes da equipe, deve estimular a criação desses conselhos, tendo como referência uma unidade básica de saúde, com população e território adscritos. A exemplo dos conselhos municipais de saúde, os conselhos locais devem ser compostos por representantes dos usuários, dos profissionais de saúde e dos gestores, e devem ter a responsabilidade de discutir os principais problemas de saúde da localidade, definindo estratégias a serem implementadas em nível local e elaborando proposições para discussão no âmbito municipal e regional.



Desenvolvimento de ambientes saudáveis e incentivos a estilos de vida saudáveis

A atuação do fisioterapeuta no desenvolvimento de ambientes saudáveis perpassa por ações desenvolvidas junto aos indivíduos, as famílias e a comunidade, objetivando promover condições dignas de vida e saúde. O fisioterapeuta deve promover a conscientização e a mobilização da comunidade em defesa de moradias dignas e condições estruturais básicas, como abastecimento de água, esgotamento e tratamento dos dejetos sanitários, coleta de lixo e pavimentação de ruas; identificar barreiras arquitetônicas e mobilizar a comunidade para reversão dessas barreiras; sensibilizar a comunidade para defesa do meio ambiente, a exemplo de preservação de áreas verdes e mananciais, além de estar atento para os níveis de educação, lazer e condições de trabalho da população.

No que tange ao desenvolvimento de habilidades pessoais, o fisioterapeuta atuará, principalmente, no desenvolvimento de hábitos de vida saudáveis tais como incentivo à prática da atividade física regular; adoção de hábitos alimentares saudáveis; combate ao tabaco, ao álcool e às drogas ilícitas; desestímulo à promiscuidade e estabelecimento de relações parentais estáveis; educação sexual para jovens e adultos; e incentivo à valorização e corresponsabilização da própria saúde e saúde da comunidade. Desta forma, o fisioterapeuta contribuiria ao desenvolvimento da promoção da saúde, tanto no desenvolvimento de habilidades individuais, quanto nas questões estruturais condicionantes das condições de vida.



Considerações finais

Esse trabalho apontou algumas possibilidades de atuação do fisioterapeuta no SUS, com destaque para o nível primário. No entanto, deve ser destacado que ele não esgota os limites da prática fisioterapêutica na atenção básica, existindo muitas outras possibilidades que devem ser apresentadas e debatidas em outros estudos.

Deve ser destacado que os profissionais enfrentarão dificuldades para atuação na atenção básica e no desenvolvimento de atividades preventivas e promocionais. A grande demanda por assistência em reabilitação apresenta-se como fator limitante para o exercício em outros níveis. A dificuldade de acesso da população aos níveis secundários de assistência ocorre também nos serviços de fisioterapia, desencadeando num grande contingente de cidadãos com limitações na saúde físico-funcional desassistidas, o que vai agravando cada vez mais sua saúde motora. O atendimento a essa demanda reprimida tende a sufocar as possibilidades de desenvolvimento de outras atividades no nível primário.

Cabe ao fisioterapeuta, em consonância com a equipe de saúde e com os gestores locais, planejar e desenvolver estratégias para contemplar tanto as ações de reabilitação, que não podem deixar de ser desenvolvidas, quanto as ações de promoção da saúde e prevenção de doenças. A atuação do fisioterapeuta na atenção básica não deve corresponder ao exclusivo desenvolvimento de ações de reabilitação no PSF, o que corresponderia à simples reprodução do modelo biomédico-curativo na comunidade, mas sim constituir-se de nova força para a transformação da realidade social e epidemiológica.

As desigualdades sociais em saúde e a exclusão social devem permear as prioridades da atuação do fisioterapeuta na saúde coletiva. A demanda reprimida de deficientes e pessoas com limitações físico-motoras têm forte relação com a exclusão socioeconômica, em que, muitas vezes, as complicações dos distúrbios musculoesqueléticos ou o agravamento de incapacidades relacionam-se ao desenvolvimento de hábitos não saudáveis ou apenas à impossibilidade de custear o transporte até o serviço de fisioterapia.

Como síntese, apresentam-se alguns princípios que devem nortear a atuação do fisioterapeuta no nível primário. O fisioterapeuta deve atuar em equipe multiprofissional e com abordagem interdisciplinar, objetivando a integralidade da assistência. Deve seguir a lógica da territorialização, adscrição da população e responsabilização, inserindo a prática do cuidado continuado. A atuação deve ocorrer, preferencialmente, no âmbito coletivo, com o envolvimento e a participação da população. As ações devem ser articuladas com diversos setores da sociedade e dos governos, primando pela reversão dos determinantes e condicionantes sociais da saúde.

Por fim, destaca-se a importância da formação profissional para consolidação do modelo de fisioterapia coletiva. O fisioterapeuta possui formação curativo/reabilitadora, biologicista e pautada em princípios flexnerianos, o que condiciona as concepções e as práticas profissionais à fisioterapia reabilitadora. Nesse sentido, a mudança na formação profissional, com a gradual substituição da ênfase curativo/reabilitadora para uma lógica promocional/preventiva, apresenta-se como condição indispensável à implementação de um novo modelo de atuação. A formação deve incluir e valorizar os conhecimentos inerentes à saúde coletiva, ao SUS e às ciências sociais. A formação aqui sugerida não diz respeito, unicamente, aos atuais estudantes de graduação e futuros profissionais, mas também deve contemplar o grande contingente profissional em pleno exercício da profissão, com uma educação continuada e transformadora.



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José Patrício Bispo Júnior
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