A utilização da Estimulação Elétrica Funcional na terapêutica da espasticidade em Hemiparéticos após AVC
INTRODUÇÃO:
O acidente vascular cerebral (AVC) é definido como qualquer processo patológico que comprometa o fluxo sanguíneo vascular para uma área distinta do cérebro (Duward, 2000). Nada em relação ao acidente vascular cerebral é acidental como sugere esta designação incorreta. O AVC geralmente é o resultado final de condições predisponentes que se originaram anos antes do evento.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o acidente vascular cerebral é um sinal clínico de rápido desenvolvimento, de perturbação focal na função cerebral, de suposta origem vascular e com mais de 24 horas de duração. As seqüelas são contralaterais a lesão cerebral e resultam em incapacidades motoras, sensitivas, mentais, perceptivas e de linguagem. As dificuldades motoras são as mais óbvias e caracterizam-se por paralisia total ou fraqueza muscular, designadas respectivamente de hemiplegia e hemiparesia.
Os déficits de movimento evidenciado no lado hemiparético são caracterizados por anormalidades do tônus (espasticidade), dos ajustamentos posturais, dos movimentos sinérgicos, perda dos movimentos seletivos e da coordenação motora. Isto é conseqüência de um déficit da inervação recíproca que na sua integridade corresponde ao controle consecutivo de agonista e antagonista, completados pelo controle dos respectivos sinergistas, para a coordenação espacial e temporal do movimento (Paeth, 2000).
A espasticidade, desordem motora por vezes incapacitante caracterizada por aumento do tônus muscular dependente da velocidade do movimento e reflexo de estiramento muscular hiperativo, decorrente de uma lesão do trato córtico-retículo-bulbo-espinal é o grande desafio para profissionais que lidam com as afecções do sistema nervoso central e os distúrbios do movimento. Concomitante ao avanço diagnóstico, as alternativas de tratamento têm evoluído muito rapidamente. Hoje, existem diversos métodos que podem ser utilizados para o relaxamento muscular. A escolha do método mais adequado requer uma análise cuidadosa do benefício funcional para cada paciente, da relação custo-benefício e da praticidade de se usar tal intervenção.
A estimulação elétrica funcional, mundialmente conhecida pela sigla FES é uma forma de tratamento que utiliza a corrente elétrica para provocar a contração de músculos paralisados ou enfraquecidos decorrentes de lesão do neurônio motor superior (Robinson, 2001).
A técnica FES tem como base a produção da contração através de estimulação elétrica que despolariza o nervo motor produzindo uma resposta sincrônica em todo as unidades motoras do músculo. Este sincronismo promove uma contração eficiente, mas é necessário treinamento específico, a fim de se evitar a fadiga precoce que impediria a utilização funcional do método com objetivos reabilitacionais (Lianza, 1990).
É sabido que a eletrofisioterafia é um procedimento que tem sido usado no controle da espasticidade. Propõe-se neste estudo uma ampliação científica deste método baseado na inervação recíproca na disfunção motora supracitada em pacientes hemiparéticos. A revisão da literatura foi realizada através de busca na base de dados da Bireme e acervo particular, no período entre setembro de 2002 a maio de 2003.
A espasticidade é um distúrbio dos reflexos espinhais proprioceptivos manifestado clinicamente como um movimento abrupto de hiperreflexia do tendão e um aumento do tônus muscular que surge durante a realização de movimentos ativos e passivos, dependendo da velocidade, por exaltação do reflexo miotático ou de estiramento. É uma entidade clínica presente nas lesões piramidais e extrapiramidais do sistema nervoso central, mais especificamente da via córtico-retículo-bulbo-espinal inibitória. Esse importante fator de incapacidade, secundário à lesão do neurônio motor superior, decorre de um desequilíbrio do tônus muscular. Os sinais clínicos da espasticidade não aparecem de forma isolada e sim associados a outras alterações motoras próprias das lesões das vias córticoespinhais ou piramidais, que, segundo o grau de acometimento neurológico, irão da paresia a plegia total da musculatura hipertônica, dando lugar a um quadro clínico basicamente por déficit motor e hipertonia muscular (Casalis,1990; Guyton, 1998).
Para compreender o déficit motor e a hipertonia muscular como manifestações clínicas, aparentemente antagônicas, provocadas pela lesão das vias córticoespinhais é necessário lembrar da sua dupla atividade. Uma atividade "positiva" que consiste em transmitir à musculatura as ordens do movimento voluntário e uma atividade "negativa", encarregada de inibir os estímulos provenientes de outros centros e cuja função principal é regular o reflexo miotático ou de estiramento (Casalis, 1990).
A principal causa de tal disfunção é um desequilíbrio dos neurônios motores alfa e gama. A lesão das vias supra-espinhais inibitórias leva a uma hiperatividade dos neurônios gama, deixando o fuso muscular mais sensível ao estiramento e causando uma potencialização pré-sináptica dos motoneurônios alfa. Cabe lembrar que o músculo esquelético, além das fibras musculares inervadas pelos neurônios alfa, responsáveis pela contração muscular, contém em seu interior receptores cinestésicos proprioceptivos encarregados de captar e transmitir informações ao sistema nervoso central sobre o estado de contração e relaxamento do músculo. Estes receptores proprioceptivos do músculo são de dois tipos: os órgãos tendinosos de Golgi e os fusos neuromusculares. Os neurônios inibitórios são também responsáveis pela inibição recíproca, mecanismo que está alterado e é observado clinicamente pela co-contração agonista-antagonista, com lentidão e enrijecimento dos movimentos (Doretto, 1998).
Segundo Shepherd, 1988; o paciente hemiparético necessita de um retreinamento motor, pois a sua dificuldade é na compreensão de como o movimento correto é executado. E para a realização do movimento desejado é necessário que ocorra a contração da musculatura agonista e o relaxamento da antagonista. Com o seu comprometimento, ao ser solicitado determinado movimento, ocorrerá uma contração da musculatura antagonista impedindo a contração da musculatura agonista, não sendo possível executar o movimento desejado.
O déficit de movimento presente sofre grande influência da anormalidade do tônus muscular que é instalado após a lesão. A espasticidade, resistência presente quando é solicitada a execução de determinado movimento, deve ser trabalhada visando à obtenção de um relaxamento muscular e assim o número de fibras indesejadas que são ativadas será diminuído (Bobath, 1978)
BASES DA ESTIMULAÇÃO NEUROMUSCULAR:
Conhecida como FES (Functional Electrical Stimulation), a estimulação elétrica funcional é o processo de criação de potenciais de ação em células estimuláveis através de impulsos elétricos que, segundo Sobrinho, 1992; "resultam em contração muscular capaz de produzir movimentos funcionalmente úteis".
O pulso elétrico da FES é composto por ondas bifásicas assimétricas de baixa freqüência com pulso retangular. Esse tipo de onda possibilita um fluxo igual de corrente em ambas as direções dos eletrodos, minimizando a ionização da pele e produzindo um efeito de estimulação eficaz. Assim a corrente não tem direção e tenta aproximar-se do fisiológico (Sobrinho, 1992).
Os dispositivos da FES podem ser vistos como contendo um suprimento de energia, gerador de sinais, um circuito controlador, um circuito modulador e eletrodos.
Não é possível a obtenção de um movimento funcional de um membro paralisado por um simples pulso elétrico é necessária uma série de estímulos, com uma certa duração, seguido por uma freqüência apropriada de repetição. Esta seqüência de estímulos recebe o nome de trem de pulsos.
A forma de trem de pulso pode ser retangular, porém fases de ascensão e descida mais inclinadas possibilitam uma contração muscular com características mais biológicas, se o tempo de subida do pulso (fase de ascensão ou ataque) for muito lento, a fibra nervosa sofre um processo de acomodação de membrana e pode não responder, apesar da intensidade de corrente satisfatória. No programa de recuperação funcional, além da forma do trem de pulsos, as características individuais de cada pulso devem ser determinadas, a fim de se obter o efeito terapêutico (Bajd, 1987).
Segundo Lianza, 1995; "a FES permite uma entrada seletiva repetitiva aferente até o sistema nervoso central e ativa não só a musculatura local como também os mecanismos reflexos necessários para a reorganização da atividade motora e movimentos que estão prejudicados devido à lesão dos neurônios motores superiores". Além disso, a eletroestimulação funcional leva a um aumento generalizado dos potenciais elétricos até chegar ao equilíbrio dos pulsos excitatórios e inibitórios, estimulando os motoneurônios desativados, enquanto o paciente tem a oportunidade de experimentar conscientemente o "movimento normal" e, com a repetição, reaprender o movimento. Assim modula-se o tônus.
Mundialmente conhecida pela sigla FES a estimulação elétrica funcional é empregada no controle da espasticidade devido a mecanismos imediatos e tardios, demonstrados na literatura. Os efeitos imediatos são: inibição recíproca e relaxamento do músculo espástico e estimulação sensorial de vias aferentes. Os efeitos tardios agem na neuroplasticidade e são suscetíveis de modificar as propriedades viscoelásticas musculares e favorecer a ação e o desenvolvimento de unidades motoras de contração rápida. (Alfieri, 1982).
A FES é indicada na espasticidade leve a moderada, independente do tempo de lesão com melhores resultados nas lesões corticais.
A estimulação elétrica foi usada no controle da espasticidade antes de 1871 quando Duchenne relatou a respeito dos efeitos da ativação elétrica do antagonista ao músculo espástico. A primeira tentativa nos tempos modernos para utilizar a primeira técnica em terapêutica para controle da espasticidade em humanos foi realizada por Lavine e colaboradores no início dos anos 50.
A estimulação é aplicada à inervação periférica do músculo antagonista, onde as fibras do fuso muscular aferentes Ia de grande diâmetro são excitadas. Os potenciais de ação gerados nessas fibras são transmitidos à medula espinhal e excitam interneurônios medulares, que por sua vez inibem a atividade do motoneurônio espástico (Bobinson, 2001).
A utilização da eletroestimulação funcional em pacientes hemiparéticos, por tratar-se de um recurso pouco utilizado e de publicações escassas, tem gerado polêmicas e também um grande número de não simpatizantes da técnica.
Vodovnik 1981, considera que a ativação repetitiva da membrana axônica pré-sináptica aumenta o potencial de repouso e a amplitude do potencial de ação que leva a uma liberação maior de substâncias neurotransmissoras na fenda sináptica. Assim, a aplicação da FES em indivíduo normal não resulta em nenhum benefício e em indivíduo lesado não promove aumento da espasticidade, pela sua inespecificidade, ou seja, pela sua ação generalizada, uma vez que o pulso elétrico não é específico para um determinado tipo de tecido, dado que o corpo humano tem a própria "balança do equilíbrio" entre a excitação e a inibição.
Harris 1980, considera eficiente o uso da FES no controle da espasticidade, desde que associado a cinesioterapia funcional, e não utilizado isoladamente, realizando-se a contração do músculo em questão o mais ativamente possível, concomitante à emissão do pulso elétrico. Sugere-se concentrar-se inicialmente no tronco, preparando o paciente para posterior aplicação da FES em articulações mais distais, já que a evolução do desenvolvimento motor se dá de regiões proximais para distais (Davies, 1996). Parte-se, então, para o ganho de movimentos seletivos através da reeducação funcional e controle de tônus em um músculo único ou, dependendo do caso, em vários músculos que formam uma mesma cadeia muscular; com atenção sempre ao posicionamento do paciente durante as aplicações (Paeth 2000).
Bajd 1987, ressalta a dificuldade em dosificar os ganhos diante de uma avaliação subjetiva e empírica com a que se dispõe diariamente, como prova de função muscular, inspeção, perimetria muscular e goniometria. O ideal seria o uso do dinamômetro para avaliar a força muscular e o acompanhamento da eletroneuromiografia para mensurar as variações do potencial elétrico na fenda sináptica.
Para Apkarian e Naumann 1991, embora a ativação no caminho da inervação recíproca possa levar a uma redução imediata da atividade do músculo espástico durante a estimulação, isso não explica por que cada estimulação pode reduzir a espasticidade e a excitabilidade do motoneurônio alfa por longos períodos após cessada a estimulação. Eles acreditam na hipótese que a estimulação do nervo motor antagonista pode reduzir a espasticidade pela ativação de caminhos multissinápticos da medula espinhal associados com a ativação do reflexo de flexão.
Mais recentemente, Baker e colaboradores 1987, têm hipotetizado que a eletroestimulação funcional pode reduzir a hipertonicidade como um resultado dos efeitos dos potenciais de ação antidrômica evocados no axônio do motoneurônio da musculatura espástica. Os potencias de ação propagados em direção à medula espinhal, ao longo dos motoneurônios, não devem somente invadir o corpo celular do motoneurônio, mas podem também passar ao longo de axônios colaterais recorrentes para sinapse com interneurônios inibitórios espinhais chamados células de Renshaw. A ativação antidrômica desses interneurônios, por sua vez, inibem a atividade dos motoneurônios hiperativos agonistas e sinergistas. Tal hipótese ainda tem que ser experimentalmente testada e verificada.
A FES é realmente um método eficiente e efetivo para restauração das funções motoras. Constitui-se hoje em um importante recurso terapêutico, particularmente quando associado a cinesioterapia. Entretanto, para tirar o máximo proveito na utilização deste equipamento, o fisioterapeuta deverá ter conhecimento dos parâmetros físicos da corrente já que, as respostas fisiológicas observadas nos pacientes dependerão destes conhecimentos.
Como todas as abordagens de tratamento conservadoras, a eletroestimulação funcional para espasticidade não irá beneficiar todos os pacientes ou controlar todas as formas de espasticidade. Estudos adicionais cuidadosamente controlados e bem projetados são necessários para identificar abordagens de estimulação favoráveis e critérios de seleção de pacientes específicos para a aplicação do tratamento bem sucedido.
Por fim, embora se reconheça que o paciente hemiparético nunca possa obter total reabilitação funcional, cabe ao terapeuta, no entanto, aproximá-la. Dessa forma deve-se lançar mão de todos os recursos possíveis para melhorar a qualidade de vida do indivíduo.
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